Feridas que não cicatrizam

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As questões que envolvem a violência psicológica contra a criança encontram na “invisibilidade” sua base de sustentação. Encoberta pelo silêncio familiar ou social, a violência é injustamente aceita como parte da natureza das relações sociais. Apesar de a quantificação do dano ser problemática e um dos mais difíceis de ser detectado pela falta de materialidade e evidências que  comprovem o fato, as pistas que a agressão deixa podem ser identificadas por algum sintoma, entre os quais distúrbios de alimentação e sono, agressividade, depressão, mutismo, choro frequente, dificuldade de aprendizagem, comportamento autodestrutivo.

As hipóteses de negligência dos pais quanto aos cuidados e deveres inerentes ao exercício do poder familiar podem implicar a aplicação de uma multa, na suspensão ou perda do poder familiar

Consequências

As consequências da violência infligida pelos pais são crianças afetadas na sua estrutura emocional, cognitiva e pessoal. Como reparar o trauma e a dor avassaladora que irrompem a estruturação psíquica da criança? Marcas que são difíceis de serem superadas, apontando que nesses casos o espaço intrafamiliar não se constitui um lugar seguro para o seu desenvolvimento.
De acordo com dados fornecidos por instituições de amparo e assistência à infância, a violência psicológica contra a criança alcança índices significativos, e está associada à maioria das formas de violência. Em Porto Alegre, o Conselho Tutelar – órgão autônomo, que por lei federal deve zelar pelo cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente – verificou que, na microrregião (centro sul) a violência psicológica contra a criança atinge números elevadíssimos, perfazendo um total de 28% de crianças, cujos direitos são violados ao sofrer violência praticada pela própria família.

As famílias que calam por medo, culpa ou vergonha de não poder proteger seus filhos acabam por alimentar a violência contra a criança, perpetuando-se na vida cotidiana da criança. As denúncias devem ser encaminhadas ao Ministério Público – que, cabe lembrar, passou a ser um dos órgãos mais engajados para garantir à criança e aos adolescentes direitos e proteção integral. Lembremos também aqui que, no Brasil, a violência psicológica contra a criança passa a ser vista como um crime, uma violação legal aos direitos humanos universais, como preconizam a Constituição Federal Brasileira e o Estatuto da Criança e do Adolescente. É uma mudança do olhar em relação à criança, colocando-a a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Pelo seu caráter eminentemente intrafamiliar, são fundamentais ações voltadas para a prevenção e medidas de apoio que permitam, por um lado, à vítima e à sua família ter assistência social e psicológica necessárias à recomposição da violência sofrida, e por outro lado possibilitem a reabilitação dos agressores. Segundo me parece, o que está ínsito para uma ação eficaz é uma sugestão interessante, qual seja, dimensionar-se o dano não somente por critérios judiciais empíricos, mas por perícia psicológica ou psicanalítica, sempre que a quantificação do dano se mostre dependente da estrutura psíquica singular da vítima.

Decisões dos Tribunais

Esse entendimento, já identificado em várias decisões dos Tribunais brasileiros, privilegia uma visão mais ampla da família, investindo na reabilitação ou na qualidade de vida das pessoas
envolvidas. É relevante destacar que as hipóteses de negligência dos pais quanto aos cuidados e deveres inerentes ao exercício do poder familiar podem implicar a aplicação de uma multa, na suspensão ou perda do poder familiar. E, em casos extremos, cabe a destituição do poder familiar, uma medida bem mais drástica e excepcional, que deve estar devidamente caracterizada na previsão da Legislação Civil. Fica a compreensão de que não basta  construir regras contra violência infantil sem considerar que existem fatores conjugados que determinam a existência dessa violência. Toda análise de ato violento contra a criança será redutiva se não considerar o mosaico de possibilidades para retirá-la de uma situação opressora e bloqueadora. A violência intrafamiliar contra a criança deve ser tratada, e não apenas punida, removendo o comportamento abusivo e recuperando, quando possível, o agressor. É um caminho para que as crianças que possam estar sofrendo violência tenham outra alternativa de vida que não a convivência e a adaptação como comportamento abusivo e violento.

Por Marise Soares Corrêa*
* Advogada. Doutora em História (PUCRS), Mestre em Direito (PUCRS), Especialista em Direito (PUCRS). Procuradora federal aposentada. www.marisecorrea.com.br

Matéria publicada no Jornal Estado de Direito – 2014